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ToggleO art. 19 do Marco Civil da Internet: como funcionava antes
O Marco Civil da Internet, sancionado em 2014, consolidou-se como marco regulatório pioneiro para o uso da rede no Brasil, estabelecendo princípios, garantias e deveres no ambiente digital.
Entre seus dispositivos mais relevantes, o art. 19 instituiu um regime específico de responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet, como redes sociais, serviços de hospedagem e buscadores, ao prever que somente poderiam ser responsabilizados por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não realizassem a sua remoção.
Esse modelo foi concebido para preservar dois pilares: a liberdade de expressão e a vedação à censura prévia. Ao transferir ao Poder Judiciário, e não a empresas privadas, a competência para decidir sobre a licitude de um conteúdo, buscava-se garantir previsibilidade jurídica e impedir que plataformas adotassem critérios subjetivos ou arbitrários para excluir publicações.
Na prática, o dispositivo funcionava como um “porto seguro” (safe harbour) para as plataformas, oferecendo proteção jurídica robusta enquanto cumprissem determinações judiciais.
Durante uma década, o art. 19 foi aplicado de forma uniforme, assegurando que a intervenção na esfera comunicacional ocorresse apenas mediante decisão fundamentada. Entretanto, com a intensificação do uso das redes sociais, o modelo passou a ser questionado.
Críticos argumentavam que a exigência de decisão judicial prévia retardava a remoção de conteúdos ilícitos, permitindo sua ampla circulação e dificultando a reparação dos danos, especialmente em situações de ofensas à honra, incitação à violência e violações de direitos da personalidade.
Assim, o dispositivo, que originalmente representava um equilíbrio entre proteção à liberdade de expressão e responsabilização proporcional, passou a ser visto, por parte da sociedade e de setores do Judiciário, como um entrave para respostas rápidas diante de conteúdos claramente ilícitos, cenário que motivou o debate no STF sobre a sua interpretação e alcance.
Por que o STF considerou o dispositivo insuficiente?
O STF examinou o alcance do art. 19 do Marco Civil da Internet a partir de dois casos paradigmáticos: o RE 1.037.396, que tratou de perfil falso criado no Facebook, e o RE 1.057.258, que discutiu a permanência de comunidade ofensiva no extinto Orkut. Em ambos, estava em debate a possibilidade de responsabilizar civilmente as plataformas pela manutenção de conteúdos ilícitos.
A maioria dos ministros entendeu que o modelo original, exigir ordem judicial específica para responsabilização, não responde adequadamente aos desafios do ambiente digital contemporâneo. Para o relator, ministro Dias Toffoli, a regra conferia às empresas uma “quase imunidade”, permitindo que conteúdos sabidamente lesivos permanecessem disponíveis por períodos excessivos, em prejuízo à proteção de direitos fundamentais.
O julgamento destacou ainda que as plataformas não atuam como meros intermediários neutros: seus algoritmos selecionam, priorizam e impulsionam publicações com base em critérios de engajamento, inclusive quando envolvem material ilícito. Esse comportamento ativo, que pode ampliar a difusão de desinformação e ataques à honra, foi visto como elemento que reforça a corresponsabilidade na prevenção e remoção célere de tais conteúdos.
A percepção consolidada no Plenário foi de que o desenho original do art. 19, embora concebido para resguardar a liberdade de expressão e evitar censura prévia, tornou-se insuficiente para lidar com violações graves e de rápida propagação na internet, especialmente em contextos de risco à integridade física, à honra e à democracia.
A decisão: inconstitucionalidade parcial e progressiva
O STF reconheceu a inconstitucionalidade parcial e progressiva do art. 19, do Marco Civil da Internet. A Corte entendeu que a redação original, ao condicionar a responsabilização das plataformas ao descumprimento de ordem judicial específica, não assegurava proteção adequada a direitos fundamentais e à própria democracia no contexto digital contemporâneo.
Flexibilização provisória
A nova interpretação mantém a exigência de ordem judicial como regra, mas cria exceções pontuais. Até que haja lei específica, será possível responsabilizar plataformas sem decisão judicial prévia quando, após notificação, não removerem conteúdos ilícitos, inclusive contas falsas, aplicando-se, por analogia, a lógica do art. 21, do Marco Civil. Isso reduz a dependência do Judiciário e acelera a resposta.
Para os crimes contra a honra, mantém-se a necessidade de ordem judicial, mas a remoção extrajudicial é possível, com responsabilização apenas em caso de descumprimento da ordem subsequente. Se o conteúdo ilícito já tiver sido reconhecido judicialmente, basta a notificação para remoção, sem nova decisão, prevenindo a reiteração abusiva.
Presunção de responsabilidade e crimes graves
A tese fixada pelo STF também estabelece presunção de responsabilidade das plataformas quando o ilícito decorrer de anúncios ou conteúdos patrocinados, inclusive quando impulsionados por redes automatizadas. Nessas situações, não há necessidade de notificação prévia: cabe à empresa comprovar que adotou medidas eficazes para a remoção.
Para crimes graves, como terrorismo, incitação ao suicídio ou automutilação, discriminação, violência contra mulheres, pornografia infantil e tráfico de pessoas, a remoção deve ser imediata. A responsabilização decorre da falha sistêmica, pela ausência de mecanismos eficazes de prevenção e resposta, diante do alto potencial lesivo.
Regimes de responsabilização coexistentes
A decisão não revogou o art. 19, mas passou a modular sua aplicação em quatro regimes:
- Regime residual: crimes contra a honra com exigência de ordem judicial, admitindo remoção extrajudicial.
- Regime geral: responsabilização por notificação para ilícitos em geral e contas falsas.
- Regime de presunção: responsabilização automática em anúncios e conteúdos patrocinados.
- Regime especial: remoção imediata e responsabilização por crimes graves, com foco na prevenção de falhas sistêmicas.
O novo regime de responsabilidade civil
O debate no STF sobre a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet impulsionou uma releitura das hipóteses em que plataformas digitais podem ser responsabilizadas por conteúdos ilícitos de terceiros. Mantém-se a ordem judicial como regra, porém com exceções ampliadas para casos de ilicitude evidente ou risco grave a direitos fundamentais.
Crimes contra a honra – Em regra, a responsabilização depende de decisão judicial específica, evitando a censura privada e assegurando previsibilidade. Admite-se remoção extrajudicial de conteúdo já declarado ilícito, sem nova ordem judicial, para evitar a perpetuação da ofensa.
Crimes graves e falha sistêmica – Em hipóteses como terrorismo, incitação à discriminação, crimes sexuais contra vulneráveis, violência contra a mulher e tráfico de pessoas, admite-se responsabilização mesmo sem notificação prévia, quando caracterizada falha sistêmica. Nesses casos, considera-se que a plataforma não adotou mecanismos técnicos eficazes de prevenção e remoção, assumindo risco pela circulação de conteúdo de altíssima gravidade e ilicitude objetiva.
Conteúdos ilícitos e contas falsas – Aplica-se o procedimento de notice and takedown, segundo o qual, recebida a notificação extrajudicial com indicação específica do conteúdo (URL), a plataforma deve removê-lo sob pena de responsabilização. O mesmo raciocínio se aplica à manutenção de perfis falsos, cuja remoção se impõe para evitar a continuidade da violação.
Anúncios e impulsionamentos pagos – Há presunção de conhecimento do provedor, já que o conteúdo foi impulsionado mediante contraprestação financeira. Nessa hipótese, a plataforma responde por material ilícito divulgado de forma patrocinada, salvo se comprovar remoção diligente e imediata após ciência. A regra também alcança redes artificiais de distribuição, prevenindo a manipulação algorítmica para ampliar o alcance de publicações ilegais.
Esse conjunto de diretrizes busca equilibrar liberdade de expressão, segurança jurídica e proteção eficaz contra danos graves no ambiente digital, preservando a exigência de ordem judicial como regra, mas prevendo respostas mais céleres e assertivas diante de ilícitos evidentes ou de alto potencial lesivo.
Autorregulação e deveres adicionais das plataformas
Além de modular o regime de responsabilidade civil, a decisão do STF estabeleceu que as plataformas digitais devem assumir um papel ativo de governança e transparência. Essa dimensão normativa busca corrigir a assimetria de informação entre usuários e empresas, bem como reforçar a prestação de contas ao Poder Público.
Obrigações de autorregulação
A Corte determinou que os provedores de aplicações de internet com atuação no Brasil elaborem regras internas que contemplem, necessariamente, três pilares:
- Sistema de notificações e devido processo: as empresas devem criar procedimentos claros e acessíveis para que usuários comuniquem conteúdos ilícitos, com prazos, formas de análise e possibilidade de recurso contra decisões de moderação;
- Relatórios anuais de transparência: plataformas precisam publicar balanços públicos sobre como respondem a notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos pagos, indicando volume de solicitações, tempo de resposta e critérios utilizados;
- Revisão periódica: essas normas e relatórios devem ser divulgados ao público, revisados e atualizados periodicamente, garantindo a adaptação a novos riscos e demandas.
Canais de atendimento e participação
Os ministros também exigiram que as plataformas disponibilizem canais permanentes de atendimento voltados não apenas a usuários, mas também a não usuários, permitindo denúncias de irregularidades ou questionamentos sobre decisões de moderação. Esses canais devem ser preferencialmente eletrônicos, de fácil acesso e amplamente divulgados nas páginas das plataformas. A intenção é ampliar a comunicação e reduzir o distanciamento entre empresas e sociedade civil.
Sede e representante legal no Brasil
Para fortalecer o cumprimento de determinações judiciais e administrativas, o STF determinou que as plataformas disponham de sede ou, ao menos, de representação legal e canais de comunicação no país, com identificação e contatos facilmente acessíveis. O objetivo é assegurar a capacidade de resposta e o efetivo cumprimento das ordens. Esse representante precisa ter plenos poderes para:
- responder em processos administrativos e judiciais, representando a empresa perante órgãos públicos;
- prestar informações às autoridades competentes sobre o funcionamento do provedor, regras de moderação e gestão de reclamações;
- relatar dados sobre transparência, monitoramento e gestão de riscos sistêmicos;
- explicar políticas de perfilamento de usuários, publicidade e impulsionamento remunerado de conteúdos;
- cumprir determinações judiciais e responder por penalidades e multas decorrentes de descumprimento das obrigações.
Natureza da responsabilidade e apelo ao legislador
A decisão ressalta que essas medidas não configuram responsabilidade objetiva, ou seja, a imputação de dano ainda depende da demonstração de culpa ou falha sistêmica. Há, entretanto, um apelo explícito ao Congresso Nacional para que aprove uma legislação detalhada que consolide esses deveres, fixe parâmetros de transparência e institua um órgão regulador apto a fiscalizar as plataformas.
Até que essa regulação surja, a eficácia dos mecanismos de autorregulação dependerá da capacidade de fiscalização de órgãos como o Ministério Público, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados e o próprio Judiciário.
O papel do Congresso Nacional
O STF, ao reconhecer a inconstitucionalidade parcial do art. 19, do Marco Civil, fez um apelo expresso ao Congresso Nacional para que edite norma abrangente e atualizada sobre o tema. Essa legislação deverá estabelecer critérios claros para a remoção de conteúdos ilícitos, definir prazos e procedimentos uniformes, bem como indicar o órgão ou entidade responsável pela fiscalização e aplicação de sanções.
Uma das possibilidades aventadas é a ampliação das atribuições da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que, por já atuar na tutela de informações e na regulação de fluxos de dados pessoais, teria condições técnicas e institucionais de incorporar a supervisão da atuação das plataformas. Essa alternativa, entretanto, exigiria previsão legal expressa, a fim de conferir base normativa sólida para o exercício de tais competências.
O STF, ao direcionar esse encargo ao Legislativo, buscou assegurar que o novo marco regulatório não apenas preencha lacunas existentes, mas também promova equilíbrio entre a liberdade de expressão e a proteção de direitos fundamentais, sem comprometer a segurança jurídica. O desafio é construir uma disciplina normativa que contemple a diversidade de serviços digitais, previna abusos e estabeleça parâmetros objetivos para a atuação estatal e privada no ambiente virtual, reduzindo a insegurança decorrente da atual multiplicidade de interpretações judiciais.
Por que o Tema 987 é estratégico para concursos?
O julgamento do Tema 987 pelo STF representa um conteúdo de alta densidade para concursos de carreiras jurídicas, justamente por articular múltiplos ramos do Direito, como: Constitucional, Civil, Administrativo, Digital e Consumidor, em torno de um mesmo núcleo problemático: a responsabilidade das plataformas por conteúdos de terceiros.
A análise da constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet exige do candidato conhecimento sobre conceitos como inconstitucionalidade parcial e modulação de efeitos, falha sistêmica (omissão sistemática de mecanismos de prevenção), notice and takedown (sistema de notificação e retirada de conteúdo) e chilling effect, todos com potencial de cobrança em provas objetivas e discursivas.
A compreensão dessas categorias demanda a integração de fundamentos constitucionais (liberdade de expressão, devido processo legal e proteção da honra e da imagem) com institutos de responsabilidade civil e com a lógica regulatória das plataformas digitais.
Os precedentes do STF – RE 1.037.396 (perfil falso no Facebook) e RE 1.057.258 (comunidade ofensiva no Orkut), são exemplares para questões que testam a aplicação da lei no tempo, permitindo explorar a diferença entre situações ocorridas antes e depois da vigência do Marco Civil, bem como as distintas hipóteses de responsabilização.
Esses casos também oferecem espaço para perguntas sobre os limites da atuação das plataformas na remoção de conteúdo e sobre o papel do Judiciário na filtragem de possíveis abusos, equilibrando proteção de direitos e liberdade de expressão.
O caráter estratégico do Tema 987 decorre, ainda, do fato de que o STF poderá fixar parâmetros que alterem substancialmente a interpretação vigente, seja ampliando hipóteses de responsabilização imediata, seja consolidando a exigência de ordem judicial.
Tais parâmetros tendem a influenciar não apenas o Direito Digital, mas também temas correlatos em responsabilidade civil e proteção de direitos fundamentais, tornando esse julgamento um verdadeiro ponto de intersecção entre áreas centrais para concursos de alta performance.
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Conclusão
A decisão do STF sobre o Tema 987 não é apenas um marco jurídico, mas uma oportunidade de compreender, com profundidade, como o Direito acompanha e regula transformações tecnológicas que impactam diretamente a sociedade. O candidato que domina esse precedente enxerga, além da letra fria da lei, os mecanismos de proteção de direitos fundamentais e a forma como o Supremo atua para preencher lacunas legislativas.
A compreensão dessa tese exige mais do que leitura superficial: é necessário articular conceitos constitucionais, civis, administrativos e digitais, identificando suas intersecções e efeitos práticos. Esse é o diferencial que separa o concurseiro comum daquele que está pronto para enfrentar as provas mais exigentes do país.
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Juiz de Direito e Promotor de Justiça
Juiz Federal e Juiz de Direito
Juiz Federal e Procurador da República
Juiz do Trabalho e Procurador do Trabalho
Advogado da União e Procurador do Estado
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Escrito por Letícia Trajano. Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-graduanda em Advocacia Trabalhista e Previdenciária. Revisora Jurídica no Curso Ênfase.
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